Uma das questões para as quais sempre se atende à hora de distinguir galego e português é a diferente evolução que se deu nestas duas variantes para as terminações latinas -ANU, -ANE e -ONE.
Na língua medieval deu três resultados:
A forma -ANU deu -ão, como irmão
A forma -ANE deu -ã, como pã
A forma -ONE deu -õ, como coraçõ
Ora bem, o português atual apenas conserva um deles sob a forma –ão. Num primeiro momento houve muita confusão, pois a maioria das formas antigas terminam com –am para os casos 2 e 3 até elas se fundirem com o caso 1, e dar a forma moderna –ão. Há alguns casos de –om, mas são principalmente monossílabos, como tom, som e algum préstimo francês, como marrom, garçom, etc.
Porém, essas não são as soluções do galego atual. Há que adicionar que em galego, aliás, produziu-se a perda da nasalidade.
No galego central e oriental conservam-se as tres formas:
irmao, chao, etc.
pam, cam, etc.
razom, coraçom, etc.
Porém, o galego ocidental (e com ele a norma do ILG), reconhece apenas dois resultados. Para ela, os resultados de 1 e 2 confundem-se em –án
Pode ser representado graficamente assim:
Na proposta da AGAL existe a hipótese de usar qualquer um dos três subsistemas acima marcados, porém parece que se impõe aquele do galego ocidental que, aliás, coincide com o do galego ILG.
No meu Prontuário de Gramática Galega (2017) propus que as formas com –ám fossem grafadas –ão e mantivessem as pronuncias do subsistema centro-oriental. Desta maneira, haveria uma dupla distinção.
Mas há quem sustém que se deveria escrever -ão em galego em todos os casos, para igualar com o português. O princípio da unidade ortográfica é correto, mas é mesmo muito complicado, pois os falantes vão ter imensas dúvidas sobre como pronunciar.
É por isso que lanço daqui a proposta de mudar -om tónico por –aõ. Observe-se como o til nasal vai colocado na segunda vogal, não na primeira, de tal forma que permite distinguir pronuncias galegas que não existem em português. O quadro anterior ficaria portanto:
Desta maneira, dar-se-iam grafias como: naõ, entaõ, decisaõ, razaõ [-‘oη], mas irmão, chão, cão, são, capitão, [-‘aη].
A Península Ibérica é um território rico em línguas em que há umas diferenças enormes entre o státus legal de umas e outras segundo o território. Assim, o catalão, por exemplo, tem diferentes classificações segundo a área em que seja falado, como se verá a seguir.
A legislação linguística responde a uma série de leis perfeitamente hierarquizadas, onde a seguinte pirâmide representa o státus das línguas no contexto constitucional espanhol:
Há, portanto, quatro níveis de legislação que afetam à glossopolítica:
Nível I: o castelhano ou espanhol, língua oficial em todo o Estado espanhol.
Nivel II: o galego, catalão, basco e occitano (aranês) nas suas regiões próprias, que são cooficiais nos seus territórios segundo os estatutos de autonomia de cada uma das regiões.
Nivel III: o asturiano, o galego eonaviego, aragonês e o catalão de Aragão, que é reconhecido por leis autonómicas, mas que não possuem o nível de cooficialidade.
Nivel IV: português (na raia estremenha) e bérbere são línguas faladas por uma parte da população, mas que não têm qualquer reconecimento. Observe-se como o português, língua internacional, não é reconhecido de nenhuma maneira do lado espanhol da fronteira.
2. Diassistemas da Península Ibérica
Do ponto de vista filológico, a Península Ibérica está dividida em vários diassistemas, como se pode ver no seguinte mapa:
A questão do diassistema pode causar alguma confusão. Um diassistema está conformado por um feixe de falares com caraterísticas comuns, que podem conformar zero, um ou dois idiomas. Entendemos idioma como uma forma linguística que está perfeitamente estandardizada. Assim, há diassistemas que não possuem um idioma, como é o caso do francoprovençal, de muitas línguas africanas e também doutras muitas americanas. O espanhol é um caso de diassistema com um idioma padronizado, enquanto o asturo-leonês é um caso de diassistema com dois idiomas estandarizados: asturiano e mirandês. Aliás, convém não confundir padrão com o parapradrão. O espanhol tem um padrão e múltiplos parapadrões para cada nação americana, bem como o português segundo os países em que é falado. Finalmente, existem os subpadrões, que são adaptações específicas do padrão para um pequeno território, como é o caso do asturiano ocidental para o asturiano, ou o alguerês e o catalão de Aragão para o catalão, como se representa neste gráfico:
3. Glossopolítica por regiões
Há, portanto, toda uma hierarquização legal acerca das línguas em Espanha:
Constituição espanhola: Estabelece-se que o espanhol é a única língua oficial de todo o Estado, como já ficou dito acima.
Estatutos de autonomia (EA), que são as leis máximas de cada região autónoma, equivalentes a uma constituição regional. Nas regiões oficialmente bilingues, no estatuto de autonomia faz-se referência ao estatuto da língua própria como cooficial com o espanhol ou castelhano. Embora se fale em línguas cooficiais de Espanha, na realidade a cooficialidade nunca alcança todo o Estado, mas apenas as regiões onde a língua não-estatal é falada.
2.1. Galiza: Segundo o seu EA, o galego língua cooficial em todo o território.
2.2. Catalunha: O EA estabelece que o catalão é língua cooficial junto com o aranês (occitano). O catalão é a língua tradicional de todo o território da Catalunha, enquanto o aranês é apenas falado no território do Vale de Aran (daí o seu nome de aranês), mas legalmente é língua cooficial de toda Catalunha
2.3. País Valenciano: Segundo o seu EA, o catalão é língua cooficial na zona oriental, que é onde aínda se fala. Na zona ocidental a língua comum é o castelhano, mas historicamente foi o aragonês. Nesta zona ocidental o valenciano pode ser utilizado ao nível oficial e administrativo.
2.4. Ilhas Baleares: O seu EA estabelece o catalão como língua cooficial em todo o arquipélago.
2.5. País Basco: O seu EA estabelece o éuscaro ou basco como língua cooficial em todo o território, embora não seja a língua falada em todo o território.
2.6. Navarra: O EA estabelece o éuscaro ou basco como a língua cooficial das regiões bascófonas, que ficam no norde.
Leis regionais para a proteção de bens culturais: Trata-se de leis regionais que dão certo reconhecimento às variantes linguísticas do território, mas sem alcançarem o státus de cooficial. Aceitam inclusive uma certa presença no idioma no ensino, por norma de forma voluntária.
3.1. Astúrias: O asturiano e o galego eonaviego são línguas protegidas., com escolarização voluntária.
3.2. Aragão: Existe reconhecimento do aragonês e do catalão, com escolarização voluntária.
3.3. Estremadura: Há reconhecimento del galegoportuguês da região de Xalma, mas esse reconhecimento não atinge os falares asturo-leoneses conhecidos como castuo.
3.5. Castela-Leão: Há um reconhecimento do galego nas regiões onde se fala e até existem protocolos de proteção em colaboração com a Junta da Galiza, com escolarização voluntária em galego. Porém, a proteção do leonês é muito vaga e não existe mesmo escolarização.
4.Esquema dos niveis de reconhecimento das línguas por territórios
Como se verá a seguir, para além de Espanha incloem-se Andorra e Portugal, porque nestes estados há níveis I por serem o catalão e o português respetivamente línguas oficiais do Estado.
5. Política linguística
Todos estas situações respondem à legislação linguística, a qual varia por regiões. Trata-se, portanto, da teoria, mas a prática é a política linguística. No geral, os governos tendem a não aplicar a legislação completamente, mas há diferenças importantes. Assim, o governo nacionalista catalão aplica grande parte da legislação linguística, enquanto o governo galego dos nacionalistas espanhóis aplica minimamente a legislação linguística, pois não visa promover nem sequera conservar o galego como língua própria da Galiza.
6. As instituições responsáveis pela estandardização
Este gráfico mostra quais são as instituições responsáveis pela normativização dos idiomas não-estatais na Península Ibérica. Os comentários virão a seguir.
Antes de mais, vê-se que o aragonês não possui nem sequer um padrão (de facto existem três propostas, mas nenhuma é oficial).
O asturiano está normativizado desde 1981 e possui um subpadrão para o asturiano ocidental, que com modificações é utilizado para os falares leoneses, embora sem valor oficial. O padrão asturiano está baseado no asturiano central, que é a variante falada nas três grandes urbes do Principado: Ovedo, Xixom e Avilês.
O catalão é o padrão mais antigo, como se vê, com três parapadrões já mostrados acima e dois subpadrões. A aplicação das normas do catalão ao valenciano é conhecida como as Normes de Castelló (1932). É bem interessante como até em l’Alguer, vila da ilha de Sardenha, o catalão local também se adaptou às normas ortográficas do catalão.
O galego está normativizado como língua independente desde 1982. Porém, existe uma outra visão do idioma como parte da Lusofonia, o qual inclui uma ortografia diferente; de facto é a mesma do português adaptada à pronúncia galega, e que também supõe uma visão diferente do galego defronte ao português, como veremos a seguir.
Para o mirandês, que é declarado língua independente, constituiu-se uma comissão (Comissão da Língua Mirandesa) que promulgou umas normas principalmente ortográficas baseadas no sistema português (do mesmo jeito que as normas do galego oficial e do asturiano estão baseadas no sistema ortográfico do castelhano). Legalmente, o mirandês é língua cooficial de Portugal com o português, mas isto é apenas uma declaração de intenções.
O aranês, que é occitano gascão falado no Vale de Aran em Catalunha, goza, como já foi dito, de um státus de cooficialidade com o catalão e o espanhol em toda a Catalunha, embora seja só a língua própria do território de Aran. O occitano não tem qualquer grau de cooficialidade nem na França nem na Itália, mas sim em Espanha. Em 1992 foi criado o Conselho da Língua Occitana, cuja norma ortográfica segue o aranês, mas com adaptações próprias que deram lugar a um subpadrão próprio do aranês em 1999, oficial no território do Vale de Aran e, portanto, em Catalanha.
Finalmente, o basco ou éuscaro foi unificado nem só ao nível ortográfico, mas também gramatical sob o nome de euskera batua (=basco unificado) em 1968 graças à Euskaltzandia, que é a Academia da Língua Basca. O batua tem como base o geoleto guipuscoano.
7. Antecedentes de secessão fora da Península Ibérica
O conceito de secessão linguística faz referência a manovras políticas que visam fragmentar uma língua para torná-la mais débil, visto que os idiomas são utilizados como ferramentas (inclusive armas) políticas que têm a ver com questões de identidade. Há vários casos na Península Ibérica, mas o fenómeno tem alcance mundial. A seguir, apresentaremos alguns dos casos mais salientáveis de secessão linguística no mundo.
No geral, os motivos que explicam a secessão linguística são três:
1. Critérios de Estado: quando a língua regional é uma ameaça à ‘patria’, onde se pode explicar este comportamento com o princípio de diuide et impera.
2. Critérios de identidade: para algumas mentalidades não se pode falar a mesma língua dos vizinhos.
3. Critérios de vizinhança: Pertenença da mesma língua a dois ou mais estados/regiões diferentes.
O caso mais destacável pela quantidade de falantes que tem é o urdu-híndi. Visto que a língua falada em Paquistão e na Índia não pode ser a mesma por múltiplos motivos, e que existe uma tradição centenária de o urdu ser escrito em alfabeto arábico (devido ao facto de o Paquistão ser um país maioritariamente muçulmano), enquanto o híndi é escrito com o alfabeto sânscrito, há justificação política para falar em dois idiomas, mas do ponto de vista filológico as coisas não assim.
Outro caso é do servo-croata, uma só língua até à desintegração da ex-Iugoslávia. Historicamente, o croata escreve-se com alfabeto latino, enquanto o servo utiliza o alfabeto cirílico. Esta duplicidade nunca foi um problema até ao início da guerra da ex-Iugoslávia. Uma vez que apareceram os novos estados, foram criadas cinco línguas, uma para cada novo estado: croata, bosníaco, montenegrino e sérvio. É evidente que não houve uma evolução tão rápida que causasse a aparição de quatro línguas num período de cerca de dez anos. Novamente os motivos políticos favoreceram a secessão linguística.
O quéchua é uma dessas línguas submetidas a um processo de secessão. Existe um debate sobre se o quéchua é uma língua ou um diassistema, porém, a fragmentação desta língua é baseada principalmente em critérios políticos, que se iniciam no Equador, onde para começar a língua não é chamada quéchua, mas quíchua. Nega-se mesmo que quéchua e quíchua sejam a mesma língua.
8. A secessão ibérica
A secessão do catalão tem várias frontes. A mais importante é a que defende que o valenciano e o catalão são línguas diferentes, o qual para determinados grupos é válido até para o balear. Desde Aragão, há quem defenda que o catalão da Franja também não é catalão. Felizmente, a secessão do catalão, promovida do nacionalismo espanhol que teme a força desta língua, não obtém resultados, pois oficialmente o catalão é uma só língua, o qual não acontece com os casos que trataremos a seguir. O temor do nacionalismo espanhol é que o catalão é uma língua com cerca de dez milhões de falantes em quatro estados: Espanha, França, Itália (Sardenha) e Andorra. A imensa maioria deles moram em Espanha, até ao ponto de que quase um em cada quatro espanhóis é catalanofalante.
A secessão do galegoportuguês sim triunfou, visto que oficialmente galego e português sim são idiomas diferentes. A pertença a dois estados diferentes favoreceu a secessão. Mas o galego ainda está a ser submetido a políticas secessionistas. Por um lado, o eonaviego, que é o galego falado nas Astúrias foi declarado língua por decreto pelo Parlamento asturiano por uma lei de 1998, como aconteceu com as línguas da ex-Iugoslávia. No início foi uma campanha do nacionalismo asturiano que calhou em quase toda a classe política asturiana até ao ponto de a questão da natureza da língua fazer parte do discurso político asturiano, que nega a galeguidade do eonaviego sem qualquer argumento filológico (no geral, os movimentos secessionistas não têm motivos filológicos). O segundo caso é o galegoportuguês de xalma, o xalmego, cuja identidade política o coloca como uma terceira língua do diassistema, diferente do galego e do português, justificada por uma lei regional estremenha, que se refere a estes geoletos como a fala. Precisamente porque o xalmego e até o eonaviego são nomeados fala como glotónimos demostra até que ponto os políticos são lerdos ao tratarem de questões filológicas.
A secessão do asturo-leonês envolve que o asturiano e o mirandês são oficialmente duas línguas diferentes. Das Astúrias procura-se falar numa só língua, mas os mirandeses não parecem estar conformes. Contudo, resulta paradoxal como para uma parte do mundo académico asturiano se nega a galeguidade do eonaviego sem qualquer complexo, mas defende-se a asturianidade do mirandês, quando a distância tipológica entre mirandês e asturiano pode ser equiparável à que existe entre catalão e occitano ou mesmo entre checo e eslovaco. Aliás, fica no ar a identidade dos falares leoneses, que nem fazem parte do asturiano nem do mirandês.
9. A consciência e a subconsciência linguística
A consciencia lingüística é um conceito bem estudado que faz referência à pertenence a uma comunidade linguística, é dizer, o falante reconhece os indivíduos que falam a sua mesma língua e formam, portanto, uma comunidade de fala. A consciência linguística vem amiúde imposta ou pelo menos promovida por uma instituição superior, por norma um governo.
Porém, existe também o fenómeno por mim chamado como subconsciencia lingüística, onde se dá uma identificação com os falantes de outra comunidade linguística, que não é reconhecida como própria. A subconsciência linguística não é nunca imposta e surge espontaneamente. Pessoalmente tenho participado e até provocado o encontro entre falantes eonaviegos e galegos; falantes xalmegos e galegos, e falantes valencianos e catalães. Todos eles, presuntamente, falantes de línguas diferentes.
As línguas românicas não-estatais tentam seguir o caminho das estatais quanto à construção dum padrão que lhes permita unir-se ao mundo das línguas de cultura. É bem claro que toda língua precisa duma língua padrão, porque a fragmentação dialetal não permite em qualquer caso a existência de escolarização, de produção literária a grande escala, a presença internacional da língua, a sua aprendizagem dentro e fora do país, etc. Semelha que é uma mania recente a de construir um padrão escrito, mas na verdade trata-se duma necessidade, porque na sociedade hodierna tudo tem um valor económico, do qual não se libra nem a própria língua.
Ao mesmo tempo, cumpre ver como nem só o processo de normalização da língua afeta à própria língua, mas também os seus utentes. Ao longo destes últimos anos, tem-se visto que o processo normalizador afetou também a todas aquelas pessoas que sendo educadas na língua estatal quiseram nalgum momento da sua vida virar uma língua menor, bem amiúde a língua familiar que ainda se conserva numa ou duas gerações anteriores.
1.2. Alguns conceitos sociolinguísticos clave
A questão de que é uma língua não a pode responder a linguística, mas a sociolinguística. Embora ambas as disciplinas se interessem pelo mesmo objeto de estudo, para a língua, a sua abordagem é distinta de tudo.
Para a sociolinguística existe uma pirâmide que podemos representar assim:
Diassistema ou domínio linguístico: é uma coabitação de mais dum padrão, como é o caso do galego-português (ou do asturo-leonés com o mirandês e o asturiano), onde a unidade histórica é ainda notável. No caso galego, como estamos a ver, oficialmente se fala de duas línguas, embora que isto, como veremos mais para adiante, é algo discutido; contudo, sempre oficialmente, o galego tem um padrão oficial diferente do português. O diassistema pode também existir sem línguas estandardizadas, quando uma série de falas históricas são de uso total ou quase exclusivamente oral, mas com uma origem comum, como é o caso do franco-provençal, pois trata-se dum feixe de dialetos.
Idioma: forma linguística que possui um padrão, formas lexicais, gramaticais e ortográficas estão fixadas normativamente. Nalguns casos, tratando-se de grandes línguas internacionais, por causa da grande diversidade entre as variantes, algumas línguas têm, dentro do seu padrão único, mais de uma norma. Isso acontece com o espanhol, que tem quase tantas normas como países, embora só possua um padrão.
Dialeto: forma linguística não-estandardizada, embora possua formas gramaticais, lexicais e até ortográficas fixadas. O dialeto carece de oficialidade, à diferença da língua, e predomina no uso oral. Por norma está submetido a uma língua estatal que serve para usos oficiais, o cal ocasiona que a situação entre a língua e o dialeto seja de diglossia. A coabitação entre línguas num plano de igualdade é conhecido como bilinguismo.
Em contraste, para a linguística a pirâmide é assim:
Um dialeto oficializado vira uma língua, o qual é algo que se baseia em questões sociais e políticas. O linguista não entra nessas disquisições, por isso o seu objeto de estudo não podem ser as línguas, mas as falas. Daí que o estudo das variantes das falas se concentre nos geoletos, como variantes esgalhadas dum tronco principal.
1.3. Modelos de estandardização
Desde que o catalão estabelecera o seu padrão atual em 1919 até a adopção do padrão mirandês em 1998, mesmo o discutido sardo LSU de 2001, refeito na LSC em 2005, há todo um caminho de estandardização nas línguas românicas menores, nos maioria dos casos realizado ao longo do século xx, com processos amiúde bem diferentes entre si. Não há –e isto cumpre afirmá-lo enfaticamente– receita nenhuma nem um modelo único. A elaboração dos padrões linguísticos tem-se feito desde situações muito variadas. Contudo, tentaremos sintetizar as principais tendências seguidas na criação de padrões modernos no conjunto da România. Ao mesmo tempo, poder-se-á comprovar como em muitos casos o padrão existente é um bocado difuso, porque existem padrões, subpradrões e normas a coabitarem dentro duma mesma língua.
Podemos estabelecer cinco tipos de processos para explicar quais são as tradições na România no tocante às línguas menores:
1. Admissão de dois padrões: é o menos frequente. É o caso do asturiano e o mirandês, mas é também doadamente explicável se atendermos para o facto de os mirandeses susterem que falam uma língua independente do asturiano.
2. Escolha do dialeto com mais prestígio social: é o caso do asturiano central.
3. Escolha do dialeto com mais prestígio literário: teoricamente este foi o critério escolhido com a proposta da Língua Sarda Unificada.
4. Escolha duma variedade central: é o caso do languedociano respeito a outros dialetos occitanos.
5. Criação dum padrão supradialetal de compromisso: é o caso do galego ILG.
Ora bem, estes critérios nem são sempre seguidos literalmente e às vezes podem encontrar-se combinações de dois ou mais destes critérios na elaboração do padrão.
1.4. A questão do padrão e das variedades
As grandes línguas românicas tiveram um processo de estandardização muito longo, que amiúde durou séculos. Aliás, estes processos não são nunca situações fechadas, porque a evolução natural das línguas obriga à revisão de conceptos normativos, como ocorreu sempre com as línguas estatais românicas.
O modelo das línguas estatais foi copiado pelas não estatais, como era de esperar. Mas a fórmula não costumou funcionar, porque as situações das umas e das outras são radicalmente diferentes de diversos pontos de vista, que podem ser resumidos assim:
as línguas não-estatais não podem fazer em poucos anos o que as línguas estatais fizeram em séculos.
as línguas não-estatais não têm toda a força dos média e das escolas para realizar uma tarefa de conscientização normativa como têm as línguas estatais
as línguas nõ-estatais estão muito mais fragmentadas do que as línguas estatais, de jeito que os dialetos têm um peso imenso que, às vezes, não é levado em conta e que, frequentemente, é a origem de conflitos posteriores.
Assim, o emprego de fórmulas normais para as línguas maiores não acostuma funcionar com as línguas menores. Conviria, portanto, procurar soluções próprias para as línguas não-estatais, o qual aconteceu, com efeito, com a maioria delas, mas não com todas.
Que há que fazer portanto? Já na primeira parte desta exposição analisamos as diferentes tendências da estandardização. Cada língua tem que procurar a sua própria. Todavia, o dilema que fica sobre a mesa é se seria possível aceitar a existência de variedades dentro dum padrão. Poder-se-ia pensar que as línguas românicas são blocos homogêneos, compactos, mas na realidade não acontece assim, porque se encontram variedades dentro de todas elas que não quebram a unidade do idioma. Se calhar, o caso mais conhecido seja o do português, que apresenta perfeitamente distinguidas uma norma brasileira diferente da europeia, onde alguns elementos chegam mesmo ao campo morfológico e sintático. As principais diferenças podem ser vistas no seguinte gráfico:
Português europeu
Português brasileiro
comboio ou camioneta, autocarro presidente da câmara municipal casa de banho saco
trem ônibus prefeito banheiro bolsa
dezassete dezanove
dezessete dezenove
fala-se português
se fala português
eu vejo-te
eu vejo você
ele vê-me
ele me vê
estou a falar
estou falando
tuvocêo senhor / a senhora
vocêo senhor / a senhora
Sem chegar a um extremo tão evidente como o anterior, as diferenças são também perceptíveis em espanhol entre a sua forma americana e a europeia, mas também em francês (francês, belga e suíça duma parte, quebequense da outra), onde há divergências subtis. Fora do âmbito românico, o inglês tem variantes próprias para as variedades britânica, norte-americana ou australiana, ainda que se possam adicionar mesmo subvariedades como a canadense, a neozelandesa, a sul-africana, etc.
Portanto, se tudo aquilo é válido para as línguas estatais, se calhar, não pode servir também para as não-estatais, mais ainda quando no geral as diferenças dialetais estão ainda mais marcadas?
Seria normal pensar que sim, que a existência de variedades normativas se torna uma necessidade na maioria dos casos, mas com uns critérios que cumpre estabelecer claramente do início. Portanto, há-de se justificar a existência de padrões junto com parapadrões e subpadrões para o caso de algumas línguas específicas, mas levando em conta que um padrão de referência é sempre necessário.
1.5. Modelos teóricos de existência de padrões, parapadrões e subpadrões
A dias de hoje, a terminologia arredor destes conceitos está a ser um bocado confusa. Trataremos, em primeiro lugar, de esclarecer em que sentido são empregados estes termos, mais concretamente parapadrão, que estamos a incluir aqui.
Em princípio, os parapadrões coabitam ao mesmo nível, sem preponderância do um sobre o outro. Às vezes, há uma forma superior, chamada “superpadrão”, enquanto os subpadrões estão sempre supeditados a um padrão, sempre são formas subsidiárias dele. Graficamente, poderia representar-se assim:
Os modelos teóricos que se podem reconhecer são estes:
a)existência dum padrão único sem variante alguma.– é raro demais, mas encontra-se em línguas como o friulano.
b)existência dum padrão com duas ou mais subpadrões.– este é o caso occitano, que tem um padrão “amplo”, basicamente o languedociano, e depois existem padrões dialetais.
c)existência dum superpadrão com parapadrões e subpadrões.– O catalão poderia ser uma mostra deste modelo, onde o padrão forte, ou superpadrão, é o da própria Catalunha, com um parapadrão próprio para Valência e outro para as Ilhas Baleares. Aliás, o catalão de Aragão e o do Alguer possuem o seu próprio subpadrão.
d)existência de dois padrões por uma luta de tradições ou critérios diferentes, onde um deles geralmente é oficial ou oficioso.– é o caso também do occitano quando se faz referência à grafia tradicional ou à do félibrige, ou no caso galego quando se compara a grafia oficial com a reintegracionista.
padrão A
padrão B
e) existência de dois padrões porque duas línguas coabitem dentro dum mesmo domínio linguístico.– É o caso do galego e do português do ponto de vista oficial, ou do mirandês e o asturiano, que são, de facto, duas línguas diferentes.
padrão 1
padrão 2
De todos os jeitos, algumas das situações mostradas anteriormente podem coexistir nalgumas das línguas devanditas. Por exemplo, o galego atual, do ponto de vista legal, é uma só língua com um só padrão (sem reconhecimento de variedades), portanto, ajusta-se à situação descrita como (a), mas também é verdade que existe outra norma não oficial, o que representa a existência doutro padrão, não oficial, que o faz corresponder com o ponto (d). O asturiano e o mirandês, como já ficou assinalado, são um caso (e), mas ao mesmo tempo o asturiano possui um subpadrão próprio para o asturiano ocidental (poderia ser classificado assim porque está supeditado ao padrão central), o que se corresponde com a situação (b). Portanto, todas estas situações amiúde misturam-se, pelo que a situação das línguas minoritárias costuma ser complicada demais do ponto de vista normativo. Todavia, algumas das situações mostradas anteriormente podem coexistir nalgumas das línguas mencionadas. Por exemplo, o galego atual, do ponto de vista legal, é uma só língua com um só padrão (sem reconhecimento de variedades), portanto, ajusta-se à situação descrita como (a), mas também é verdade que existe outra norma não oficial, o que representa a existência doutro padrão, não oficial, que o faz corresponder com o ponto (d). O asturiano e o mirandês, como já foi assinalado, são um caso (e), mas ao mesmo tempo o asturiano possui um subpadrão próprio para o asturiano ocidental (poderia ser classificado assim porque está supeditado ao padrão central), o que se corresponde com a situação (b). Assim, todas estas situações amiúde misturam-se, pelo que a situação das línguas minoritárias costuma ser complicada demais do ponto de vista normativo.
1.6. A pirâmide legal das línguas em Espanha
Para a compreensão de qual o státus de cada língua dentro de Espanha, partiremos da seguinte pirâmide:
Línguas não estatais cooficiais: são assim reconhecidas por uma lei de âmbito autonómico, normalmente o Estatuto de Autonomía.
Línguas não estatais não cooficiais: O seu estatuto de autonomia reconhece-as, mas não lhes outorga valor de cooficialidade.
Línguas não estatais sem reconhecimento: não há qualquer lei que lhes dê reconhecimento legal e, portanto, é como se não existissem.
1.7. Alguns conceitos básicos como L1 e L2
Um falante bilingue pode ter duas L1. Contudo, sempre uma das duas línguas tende a se impor sobre a outra ainda que só seja ligeiramente. Sempre uma língua tem que predominar sobre a outra, ainda que o falante tenha um perfeito conhecimento de ambos os idiomas.
No caso de falantes que possuem uma língua regional, esta deveria prevalecer sobre a língua estatal. Estaríamos a falar duma L1 primaria e uma L1 secundária, sendo ambas L1 por serem adquiridas (não obstante, antigamente as L1 estatais eram aprendidas, geralmente na escola, mas hoje já não é assim, os nenos convivem com a língua estatal ao seu carão desde o primeiro momento). Salvo em casos muito contados, a L1 secundária, sendo esta uma língua estatal, tende a invadir os campos fono-gramaticais da L1 primaria (é a velha questão da língua teto que influi na língua coberta). Nestes casos, diríamos que os falantes são diglóssicos, mais do que bilingues, pois uma língua domina sobre a outra no plano da expressão, ainda que não necessariamente no plano do pensamento.
O falante tradicional ou paleofalante poderá daquela ter duas L1, ou ter uma L1 que é a sua língua própria e uma L2 que a língua estatal, mas que geralmente chega a dominar (diríamos que tem um nível de competência na língua estatal mui alto). O neofalante, em contraste, tem uma L1 que geralmente é a língua estatal, mas aprende uma L2 com que tentará ter um nível de competência muito alto, até o ponto de que a L2 poda tornar-se a L1 e tenha um ponto de partida semelhante ao do paleofalante, mas com a diferença que não é um falante diglóssico, mas bilingue, pois é capaz de separar ambas as línguas em todas os planos, sem produzir mudança de códigos e menos ainda a mistura de códigos, algo próprio da maioria dos paleofalantes como já ficou indicado.
1.8. A coabitação de socioletos: o caso da Galiza
Não é singelo definir qual a situação da Galiza dum ponto de vista sociolinguístico. Conforme a normativa autonómica vigente, a Galiza é um território oficialmente bilingue, com dois idiomas cooficiais, o galego e o espanhol. Mas as coisas não são tão simples, visto que a presença de duas línguas num mesmo território leva à marginalização duma delas, neste caso da língua própria, o galego, frente ao castelhano, tornando-se o galego, portanto, uma língua minorizada no seu próprio território e deixando de ser a língua de uso comum. É falso afirmar que a sociedade galega é bilingue na maioria dos casos, é mais bem diglóssica, pois as duas línguas não gozam do mesmo status.
Além disso, é preciso apresentar quais são as opções linguísticas que tem qualquer falante galego. São, na realidade, socioletos, podendo-se distinguir pelo menos cinco, tal como se vê no seguinte gráfico:
Há uma interligação entre todas as socioletos anteriores. Enquanto o espanhol padrão é usado em circunstâncias muito formais, o espanhol regional da Galiza já é língua de comunicação habitual, tendo como traço principal que se trata dum espanhol moldado pelo galego, que neste caso funciona como um substrato. Frente a ele temos o galego padrão, como língua administrativa e culta, principalmente escrita, que compete nos usos informais com o galego dialetal, apenas falado. Porém, muitos cidadãos fazem um uso constante do híbrido entre galego e castelhano, que não é senão um passo prévio à desaparição do galego. De facto, em muitos dos casos em que se afirma que as pessoas falam galego, o que falam realmente é um híbrido, popularmente conhecido como castrapo, que de facto está a substituir o galego dialetal como veículo de comunicação.
Os falantes de galego passam com muita frequência para o castelhano, mas em contraste os falantes de castelhano passam raramente para galego.
Estamos a viver uma fase de substituição linguística em que o galego é varrido polo castelhano em todos os âmbitos sociais. Porém, a substituição não sucede de um dia para o seguinte, por isso é possível encontrar a existência de híbridos linguísticos que perduram uma ou duas gerações.